Se as fileiras adversárias querem que a gente tire onda antes do domingo, taí, bem abaixo, um motivo para tanto. Independente do resultado do jogo de logo mais:
Por FABRÍCIO CARPINEJAR
O Campeonato Brasileiro de 2009 escreve o derradeiro capítulo do livro "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho, clássico de 1947 do irmão de Nelson Rodrigues.
O palco do épico curiosamente será o Maracanã neste domingo , no duelo entre Flamengo e Grêmio.
No Maracanã, justo no estádio batizado de Mário Filho, o nome do escritor. Uma coincidência emocionante.
O protagonista é o mineiro Jorge Luís Andrade da Silva, o Andrade, ex-jogador do Mengo da geração vitoriosa dos anos 80, que formou uma das armações mais compactas e habilidosas do Brasil, ao lado de Zico e Adílio.
Andrade poderá ser o primeiro técnico negro campeão brasileiro.
Foram raros, foram poucos os que regeram a casamata do estádio.
Ele põe fim ao apartheid da última hierarquia do esporte. Até o exército foi mais justo antes.
Não há negros no comando dos nossos principais times.
Existem preparadores físicos, assistentes, dirigentes.
Mas nunca existiu um negro mandando numa grande esquadra, organizando taticamente o elenco, dando a palavra final sobre a escalação.
É como se ele pudesse chefiar com a bola nos pés, não fora do campo. Como se o negro fosse um operário, vetado como engenheiro, proibido como arquiteto das emoções das arquibancadas.
Como se relegasse ao negro o papel de ator, não permitindo seu desempenho como cineasta, barrando a função autoral e a inteligência operística.
Mesmo depois de Leônidas, Zizinho, Domingos da Guia, Didi, Garrincha e Pelé, o negro era um tabu como treinador dos maiores clubes.
E pensar que a mudança demorou a acontecer nas planilhas. Dentro de campo, estava resolvida na década de 50.
Segundo Mário Filho, o futebol passou por três grandes fases: 1900/1910 (elitização), 1910/1930 (exclusão de negros; Vasco é o primeiro time a adotá-los e lutar contra a discriminação) e 1930-1950 (ascensão social dos negros e liberdade racial).
Está caindo o último bastião do racismo no país. Acabaram as restrições.
Andrade é o Orfeu das pranchetas.
Realizou uma revolução no vestiário, uma revolução de abrigo, só comparável à grandeza heroica de um Pelé fardado.
Desde 2004, espera sua chance de efetivação no Flamengo.
Já salvou o time da degola como interino, já foi suplente diante das demissões de Celso Roth, Joel Santana e Ricardo Gomes.
Durante cinco anos, engoliu sapos, recompôs diplomaticamente suas frustrações e expectativas, aceitou passivamente os interesses das bolsas de valores.
O folclore conta que Cuca o colocava para completar a barreira nos treinos, durante a cobrança de faltas.
Andrade é o principal personagem.
Não será Petkovic ou Adriano.
É ele. Com seu temperamento discreto, abalou a onipotência dos supertécnicos como Luxemburgo e Muricy, mostrando que altos salários não significam sucesso.
É o gracioso urubu no meio das garças à beira do gramado.
Abre passagem a uma nova geração de estrategistas das categorias de base.
Indica que os responsáveis pela entressafra alcançam fartas colheitas.
Não briga com a imprensa, não grita mais do que o normal, não arma segredos de Estado, não se escandaliza com as críticas.
Difere do tom casmurro e embirrado de parte dos seus colegas e da histeria autoritária das estrelas de terno e gravata.
Não é paranóico, não se vê perseguido e injustiçado nas coletivas.
Tem samba no sangue, uma alegria mansa, um amor antigo pelas redes.
É resolvido o suficiente para suportar qualquer pressão.
Escuta mais do que fala.
Porta-se com a audição de um juiz, longe da tradicional oratória e acusatória de um promotor.
Não é por acaso que faz acupuntura nos ouvidos.
Ao assumir o comando em julho, Andrade retirou o rubro-negro de baixo da tabela, conseguiu um aproveitamento de 72,5% nos derradeiros 17 jogos.
Mário Filho deve encontrar agora uma posição confortável no túmulo. Graças a Andrade, lavamos definitivamente o pó-de-arroz da pele.
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