domingo, 21 de março de 2010

josé geraldo couto explica adriano e a histeria da mídia

nostalgia da lama
(artigo publicado no caderno mais! da edição de hoje da folha de são paulo)
Talvez não seja correto dizer que o esporte é um espelho da sociedade, mas a maneira como os fatos do esporte e seu entorno são lidos pela mídia certamente diz muito sobre ambas (a sociedade e a própria mídia).
O “mea culpa” do golfista Tiger Woods diante das câmeras expôs muito mais que suas infidelidades conjugais. Colocou a nu uma cultura manifestamente puritana que transforma em espetáculo midiático a repressão de suas pulsões.
Como se sabe, muitos norte-americanos, talvez a maioria, acham que gostar de sexo é uma espécie de doença.
No Brasil, a cobertura e a repercussão crítica dos recentes escândalos envolvendo os astros do futebol Adriano e Vagner Love revelam, entre outras coisas, um indisfarçável preconceito de classe.
O que mais escandaliza a chamada crônica esportiva, com honrosas exceções, parece ser o ambiente em que os personagens foram “flagrados”. A própria recorrência desse verbo é significativa, como se estar num baile funk ou simplesmente na favela fosse por si só uma atitude ilícita ou, no mínimo, suspeita.
Na Chatuva e na Barra
O vínculo entre os termos favela e crime, martelado durante décadas pelos meios de comunicação, parece ter-se tornado indissolúvel. Condena-se Adriano não tanto por trocar socos com a namorada, mas por fazê-lo no morro da Chatuva, e não numa cobertura na Barra da Tijuca ou num palacete em Milão.
O viés de classe nunca ficou tão evidente, aliás, como quando o jogador, um ano atrás, deixou de se reapresentar a seu clube, a Internazionale de Milão, e se refugiou durante três dias no bairro onde se criou, no Rio de Janeiro. A perplexidade foi geral, na imprensa e no mundo futebolístico.
A pergunta que se repetia era: como um sujeito abre a mão de milhões de euros, do destaque num clube de ponta, de uma cidade sofisticada, para voltar à favela? O corolário, explícito ou subjacente, era mais ou menos o seguinte: “Quem nasce na maloca nunca vai deixar de ser maloqueiro”.
Uma espécie de “nostalgia da lama” arrastaria Adriano para baixo – ainda que, topograficamente, para cima.
O que escandaliza, no fundo, é a recusa em aderir aos valores, condutas e discursos tornados praticamente compulsórios para quem “vence” na nossa sociedade.
Não se perdoa Vagner Love por optar por um baile funk na Rocinha em vez de uma boate na zona sul do Rio. No primeiro, estão os “bandidos”; na segunda, a gente de bem.
Pouco importa que o tráfico que mata tanta gente no morro se alimente do consumo recreativo de muitos habitués das casas noturnas chiques.
Num país de “malandros com contrato, com gravata e capital”, não escandaliza ninguém que Kaká sai publicamente em defesa dos líderes de sua argentária igreja, investigados em dois países por estelionato e lavagem de dinheiro.
Kaká, diz a crônica em uníssono, é um rapaz de boa cabeça, de boa família, de boa “estrutura”. Mas Vagner Love aparecer num baile na Rocinha ladeado por traficantes armados (algo que talvez ocorresse com qualquer celebridade que visitasse o local) é intolerável.
Motel e travestis
Para reforçar a constatação de que, entre nós, o viés de classe é ainda mais forte do que o viés moralista, um caso exemplar é o de Ronaldo, “flagrado” (olha o verbo de novo) com três travestis num motel do Rio.
O que mais se ouviu, nos bastidores da imprensa, foi: “Como é que um sujeito com grana que ele tem vai se meter com travecos de rua? Era só pegar o telefone e encomendar a perversão que quisesse, no sigilo do seu apartamento ou de um hotel de luxo”.
Ou seja, dependendo do montante gasto, do cenário e dos figurinos, tudo é bonito e aceitável.

jgcouto uol.com.br

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