segunda-feira, 24 de maio de 2010

Onde as vuvuzelas não entram




CIDADE DO CABO – Enquanto os negros passam as tardes de sábado e domingo vendo ou jogando futebol nos campos de terra das favelas, os brancos lotam estádios de rúgbi ou pubs perto das arenas para assistir as partidas desta modalidade estranha aos brasileiros.

O esporte reflete os anos de segregação na África do Sul. Após duas décadas de extinção oficial, o apartheid ainda está presente em muitos aspectos do cotidiano do país da Copa.

As arquibancadas evidenciam as distâncias entre povos de culturas tão distintas.

Na África do Sul, país com 11 idiomas oficiais, cada um fala sua língua e tem suas preferências. Muitas das diferenças aumentaram nas décadas do regime de separação e opressão imposto pelos brancos aos negros e não-europeus.

Mas, hoje, muitas vezes ver brancos andando somente com brancos e negros só com negros às vezes não é sinal de preconceito, mas identidade com quem parece mais próximo.

As duas últimas semanas mostraram claramente as preferências de cada um.

Enquanto negros acompanham jogos de um torneio promovido por uma empresa nacional, que chegou a envolver o maior clássico do futebol sul-africano, Kaizer Chiefs e Orlando Pirates, duas equipes de Soweto, em Johannesburgo, os brancos estão em êxtase com seus times de rúgbi.

No último dia 14 também houve clássico do esporte na Cidade do Cabo, entre os Stormers, representante local, e o Blue Bulls, de Pretória.

Libertadores do rúgbi

A partida valia pela última rodada da primeira fase do Super 14, torneio com as 14 melhores equipes da África do Sul, Austrália e Nova Zelândia – três grandes potências do esporte –, uma espécie de Taça Libertadores do rúgbi do hemisfério sul.

Jogando em casa, apoiado por fanáticos torcedores que haviam comprado todos os 50 mil ingressos com três semanas de antecedência, os Stormers massacraram os Bulls com o placar de 38 a 10.

Vale ressaltar que o Bulls, melhor time sul-africano, jogou sem suas principais estrelas, pois já estava classificado para as semi-finais do campeonato.

Mas, para os torcedores dos Stormers, isso não diminuiu o brilho da vitória, que também colocou a equipe na próxima fase e fez explodir em festa Newlands, subúrbio apenas de casas, confortáveis e bem protegidas, onde fica o estádio e moram abastados sul-africanos, quase todos brancos.

Os Stormers pegaram os neozelandeses do Waratahs no último sábado. Novamente o confronto ocorreu na arena de Newlands, com casa cheia, pois todos os ingressos se esgotaram no começo da semana.

O mais barato, para uma espécie de geral, onde o torcedor fica em pé, atrás de uma das traves, custa o equivalente a R$ 25. Pelo lugar mais caro, na lateral e perto do campo, cobram-se cerca de R$ 70. Na mão de um cambista, o bilhete vale até cinco vezes mais.

O torcedor que conseguiu o ingresso não se arrependeu. Viu outro massacre: 26 a 0.

Decisão em Soweto

Já o Blue Bulls jogou no Orlando Stadium, em Soweto, periferia de Joahnnesburgo que se tornou símbolo da luta negra contra a segregação racial. Foi a primeira grande partida oficial de rúgbi em uma township, como são chamados os guetos criados pelo governo para abrigar somente negros durante o apartheid. E a partida também teve grande público.

Cinco dias antes, o clube anunciou que todos os ingressos foram vendidos em poucas horas. Uma resposta ao temor de que a partida pudesse ser boicotada pela torcida do Bulls, formada praticamente por brancos, ou pelos moradores de Soweto, quase todos negros.

Na semana passada, comunidades de fãs do Bulls na internet reclamaram e debocharam da marcação do jogo para Soweto. Mudança que curiosamente ocorreu por causa do futebol. O Bulls precisou trocar de estádio porque sua casa, o Loftus Versfeld, em Pretória, foi fechado há uma semana para a Copa do Mundo.

Além da diretoria do Bulls, líderes negros comemoram a realização da partida em Soweto. Entre eles, o arcebispo Desmond Tutu, militante anti-apartheid e Prêmio Nobel da Paz. “É o mais importante evento esportivo esporte desde que os Springboks ganharam a Copa do Mundo de Rúgbi em 1995 (veja Para Saber Mais)”, declarou à imprensa local.

Como o Blue Bulls venceu, agora teremos a repeitção do clássico nacional, na grande final, e em Soweto. O país vai parar.


Negro, só a serviço

Estive no estádio de Newlands duas semanas atrás, para acompanhar a partida entre Stormers e Bulls. Vi negros apenas do lado de fora, fazendo a segurança dos pubs e da arena, trabalhando nas barracas de souvenirs e comida, servindo os brancos.

Não havia um só negro nas arquibancadas (isso em um país onde são quase 80% da população). Os poucos interessados no jogo tentavam avistar as tvs dos pubs por meio das vitrines dos bares, do lado de fora, ou das grades do estádio por onde era possível ver uma fração do campo.

Todos disseram nunca ter conseguido entrar porque nunca tiveram dinheiro para o ingresso. “A gente nem tem cartão de crédito para comprar na Internet”, comentou Alex NDumo, vendedor ambulante de 43 anos.


Mesmo que conseguissem o bilhete, os negros não poderiam se divertir como mais gostam, fazendo barulho. Em cada entrada de um estádio de rúgbi há placa lembrando a proibição de instrumentos musicais e de vuvuzelas, as cornetas-símbolo dos torcedores de futebol sul-africanos.

O "esquenta" do clássico

Nas partidas de rúgbi também há cambistas e bebedeira fora do estádio, churrasquinho (de lingüiça), provocações entre torcedores. Mas tudo muito bem organizado, sem invasão de camelôs, brigas, empurra-empurra para entrar no estádio. As torcidas rivais sequer são separadas.

Quem não consegue ingresso, tenta um lugar nos pubs ao redor dos estádios, onde a partida é transmitida via canal pago. E quem não consegue entrar em um desses bares recorre a tendas montadas pelos patrocinadores, também no entorno da arena.

A maioria dos brancos fãs do rúgbi é africâner, o povo descendente de holandeses que se estabeleceu na África do Sul há mais de três séculos e criou o apartheid. Antes e após cada jogo, grande parte deles se reúne para o braai, como chamam o nosso churrasco. Durante os 80 minutos de partida, se divertem com o time, música norte-americana nos intervalos. Difícil imaginá-los trocando as mãos pelos pés e assoprando vuvuzelas a partir de 11 de junho.

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